Astrônomos brasileiros lideram pesquisa que
levou à descoberta de anéis ao redor de pequeno objeto do Sistema Solar
Por Felipe Braga Ribas.
No começo de abril publicamos (Braga-Ribas et
al. 2014, Nature, 508, 72) uma descoberta que surpreendeu
a todos. Descobrimos que pequenos corpos do Sistema Solar podem ter anéis,
propriedade antes vista somente ao redor dos planetas gigantes do nosso
sistema. Através da observação de uma ocultação estelar, detectamos e caracterizamos
um sistema de dois anéis no entorno do objeto Centauro (10199) Chariklo. Mas,
se a descoberta foi surpreendente, por que estávamos observando este objeto, o
que esperávamos?
As observações que realizávamos estavam
inseridas num contexto mais amplo do que a busca por propriedades exóticas. O
"grupo do Rio"(*), como somos chamados por
colaboradores internacionais, é responsável pela predição de ocultações
estelares por objetos Transnetunianos e Centauros, e vem atuando igualmente na
observação, redução e análise de tais ocultações. Estas ocultações são como
eclipses, quando, para um dado observador, um objeto passa na frente de uma
estrela projetando uma "sombra" do corpo sobre a Terra.
Os objetos Transnetunianos (TNOs) são tidos
como verdadeiros fósseis no Sistema Solar. Os Centauros são antigos TNOs que
foram trazidos para órbitas instáveis entre Júpiter e Netuno. Uma vez que estão
em órbitas afastadas do Sol, pouco devem ter sofrido com as intempéries
interplanetárias. Além disso, sua distribuição orbital, de tamanho e de massa
podem estar intimamente ligadas à migração planetária na época da formação do
Sistema Solar. Por isto, determinar suas propriedades físicas, como tamanho,
densidade, albedo e composição é chave para remontar o cenário no qual o Sistema
Solar se originou.
Para isto, usamos a poderosa técnica de
ocultações estelares, que permite determinar tamanho e forma destes longínquos
objetos com precisões na ordem do quilômetro, a
partir do solo, além é claro de explorar seu entorno na busca por satélites,
tênues atmosferas e (a partir de agora) anéis. Enquanto isto, medidas feitas
por telescópios espaciais como Herschel e Spitzer, permitem determinar seus
tamanhos equivalentes com erros na ordem de 50 km, nos melhores casos.
No entanto, é claro que há dificuldades. Entre
elas, prever e observar as ocultações. Os primeiros TNOs (desconsiderando
Plutão) foram descobertos em 1992 e a maioria,
dos quase 1300 conhecidos hoje, foi descoberta no início dos anos 2000.
Isto significa que suas órbitas não são bem determinadas, já que, desde lá, não
percorreram nem 10% de suas órbitas completas. Além disso, a posição da estrela
a ser ocultada, dada por catálogos estelares, também não nos satisfaz.
Colocando em números, um objeto a 30 UA com 500 km de diâmetro tem um tamanho
aparente menor que 0,025 segundos de arco (isto equivale à uma moeda de 1 real
a 200 km do observador). Então é preciso
conhecer a posição da estrela e do TNO com precisão superior a 0,025", se
não quisermos errar por mais de 500 km a posição da sombra projetada do TNO sobre
a Terra.
Foi aí que entrou o grupo do Rio, desde 2007,
com observações quase anuais feitas no telescópio do ESO de 2.2 m em La Silla.
Fizemos um catálogo de estrelas que estarão no caminho de 50 TNOs e Centauros
até 2015. Além disso, temos observado regularmente os objetos para obter suas
posições e calcular suas efemérides com melhor precisão do que as disponíveis
publicamente. (Assafin et al. 2010, A&A, 515, A32; Assafin et al. 2012,
A&A, 541, A142 e Camargo et al. 2014, A&A, 561, A37)
Foi somente em 2009 que a primeira ocultação
por um TNO foi detectada. O objeto foi o
pequeno 2002 TX300, e foi realizada pelo grupo do MIT (Elliot et al.
2011, Nature, 465, 879). No inicio de 2010 nosso grupo detectou sua primeira
ocultação, em São Luis do Maranhão, quando Varuna, um alongado objeto com quase
1000 km de diâmetro, passou em frente a uma estrela brilhante (V = 11.2). Ainda
em 2010, mostramos que Éris rivaliza em tamanho com Plutão (Sicardy et al.
2011, Naure, 478, 493). A cada ano que passou mais ocultações foram detectadas,
o que nos permitiu aprimorar nossa metodologia e ampliar nossa rede de
observadores colaboradores. Isto também colocou a colaboração entre o
Observatório de Paris (Meudon/FR), o Instituto de Astrofísica de Andalucia
(Granada/ES) e o Observatório Nacional (Rio de Janeiro/BR), como líderes
mundiais na previsão, observação e análise destes eventos. Desde 2009, das 23
ocultações observadas envolvendo TNOs e Centauros (não considerando ocultações
promovidas por Plutão), nosso grupo e colaboradores previu e observou 19 delas,
sendo 8 delas em 2013 (Ortiz et al. 2012, Nature, 491, 225; Braga-Ribas et al.
2013, ApJ, 773, 26).
Então, em 3 de junho de 2013 realizamos mais
uma observação para determinar as propriedades físicas de um dos nossos objetos
alvo, no caso, Chariklo, o maior Centauro com cerca de 250 km de diâmetro. Por
se tratar de uma ocultação envolvendo uma estrela brilhante (V=12), uma grande
campanha observacional foi organizada (devel2.linea.gov.br/~braga.ribas/campaigns/),
para a qual alertamos toda nossa rede de colaboradores.
Logo após às observações, quando as primeiras
curvas de luz foram obtidas, notamos que havia algo de diferente em Chariklo.
Foi a curva de luz oriunda do telescópio Dinamarques de 1.54 m em La Silla no
ESO que deixou claro que havíamos detectado um sistema de anéis ao redor de
Chariklo. Graças à cadência de 10 imagens por segundo, pudemos determinar que
dois anéis, de 7 e 4 km de espessura com profundidade ótica 0,4 e 0,06, orbitam
Chariklo a 391 e 405 km, respectivamente, e são separados por uma divisão de 9
km. Por serem dois anéis bastante densos e confinados e pela existência da
divisão, acreditamos que há ao menos uma lua agindo como pastora, um processo
já observado nos anéis de Saturno e Urano. Calculamos que um satélite de alguns
poucos quilômetros já seria capaz de explicar a configuração observada.
Sabia-se que Chariklo apresentava um
comportamento anômalo, já que sua magnitude absoluta tinha diminuído entre 1997
e 2008. No mesmo período, a banda de gelo de água outrora observada não fora
mais detectada em 2008. Ao descobrir os anéis e verificar sua orientação,
notamos que uma das soluções possíveis, mostrava que em 2008 os anéis teriam
sido "vistos" pelo bordo. Como são muito finos pouco contribuíam ao
fluxo total do sistema. Com isto, inferimos que os anéis são parcialmente
compostos por gelo de água, e calculamos que atualmente contribuem com 50% do
fluxo total observado para o sistema, mesmo tendo uma área superficial
equivalente à 15% da área superficial de Chariklo, isto é, são muito
brilhantes.
Muitas questões surgiram, como sua origem,
estabilidade e idade. O mecanismo de satélites pastores é universal? São únicos
nesta classe de objetos? Provavelmente não. Mas o que os faz especiais para
terem esta propriedade nunca antes vista nos, vastamente estudados, asteroides
do Cinturão Princial? Há muito o que se estudar para chegar à estas respostas.
Enquanto isto continuaremos a observar as
ocultações promovidas por estes objetos. Chariklo mesmo ocultará uma outra
estrela no final de abril. O objetivo: aprimorar nosso conhecimento sobre suas
propriedades físicas, e assim contribuirmos para a compreensão dos processos
pelos quais os Sistema Solar passou durante sua formação. Nos próximos anos,
uma vez que o catálogo astrométrico feito pelo telescópio espacial GAIA esteja
disponível, a expectativa é que as predições de ocultações tenham qualidade
ainda melhor, o que permitirá a caracterização de muitos objetos e o estudo
fino de corpos cientificamente interessantes, como Chariklo.
Vale salientar que a descoberta é assinada por 64 autores, envolvendo 34 instituições de 12 países diferentes. Destes, 13 são brasileiros de 7 instituições diferentes.
* O "grupo do Rio" é composto pelos pesquisadores Roberto Vieira Martins (ON), Marcelo Assafin (OV), Julio Camargo (ON), Felipe Braga Ribas (ON) e Josselin Desmars (ON) e pelos estudantes Alex Dias de Oliveira (ON), Gustavo Benedetti-Rossi (ON) e Altair Gomes Ramos Jr (OV).
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